Até R$ 610 mil por pessoa e saídas da Itália às sextas: como é a denúncia sobre 'safári humano' em Sarajevo

‘Safári humano’: Itália investiga turistas que atiravam em civis durante Guerra da Bósnia
Por uma pequena fortuna, equivalente até R$ 610 mil em valores atuais, “cidadãos respeitáveis” italianos, russos e americanos, entre outras nacionalidades eram levados de uma cidade da Itália até um campo de batalha na Bósnia, nos anos 1990, para atirar em civis por diversão, numa espécie de “safári humano”.
Esta é a denúncia analisada pelo Ministério Público de Milão, na Itália, após o recebimento de um dossiê do jornalista e escritor italiano Ezio Gavazzeni. Segundo a imprensa do país, o procurador Alessandro Gobbis, especialista em investigações antiterrorismo, deve começar a convocar testemunhas para depor em breve.
Há esperança de que alguns dos suspeitos ainda estejam vivos e possam responder criminalmente.
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O “safári humano” teria ocorrido entre 1993 e 1995 durante o cerco a Sarajevo, em um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Bósnia.
Segundo o dossiê de Gavazzeni, os interessados pagavam até 100 milhões de liras italianas (o equivalente a cerca de 100 mil euros atuais) a uma companhia aérea iugoslava de voos charter chamada Aviogenex, que tinha uma filial na cidade de Trieste, no nordeste italiano, perto da fronteira com a Eslovênia — país este que fazia parte da federação iugoslava até 1991.
Torre de TV em meio a camada de poluição em Sarajevo, capital da Bósnia
Reuters/Dado Ruvic
“As viagens teriam sido feitas de avião a partir de Trieste, depois de helicóptero e veículo da Sérvia através da zona de guerra até Sarajevo”, descreve a publicação italiana “Il Giornale”.
A reportagem do “Giornale” afirma que um dos pivôs do esquema era Jovica Stanišić, chefe da agência de inteligência da Iugoslávia (atual Sérvia). Stanišić, que atuou secretamente para os EUA como agente da CIA, foi condenado em 2021 por crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, em Haia.
Participantes
Relatos de “safáris humanos” em Sarajevo circulavam há décadas na imprensa italianas, embora não houvessem provas consistentes. As reportagens atuais, porém, dão conta de que a denúncia apresentada em Milão inclui o nome de ao menos três cidadãos italianos, um de Trieste, um de Turim e outro de Milão — este, o dono de uma clínica de medicina estética na cidade.
Há contudo, relatos de homens ricos provenientes de outros países, como EUA, Canadá e Rússia.
Um documentário da época “Serbian Epics” (1992), do cineasta polonês Pawel Pawlikowski, mostra o escritor e político ultranacionalista russo Eduard Limonov (1943-2020) atirando com uma metralhadora nas colinas de Sarajevo. Não há evidências de que ele fosse um turista de guerra, porém: ele teria sido convidado pelo líder sérvio-bósnio Radovan Karadžić, também condenado por crimes de guerra.
O relato de Ezio Gavazzeni dá conta de que as excursões saíam às sextas-feiras e terminavam no domingo, de forma que os participantes voltassem às suas vidas normais na segunda-feira.
Boa parte do dinheiro seria usado como suborno às milícias sérvio-bósnias e a intermediários para serem armados com fuzis e posicionados nas colinas ao redor da cidade.
Uma vez armados e posicionados nas colinas ao redor de Sarajevo, eles podiam atirar em civis, incluindo crianças. Um dos alvos seria a “Alameda dos Snipers”, um corredor viário na capital da Bósnia que ficou famoso pela atuação dos franco-atiradores.
Os eventuais suspeitos podem ser indiciados por homicídio doloso agravado por crueldade e motivo torpe. Boa parte dos mortos eram civis que, num ato de desespero, se arriscavam saindo de suas casas para buscar alimentos, remédios e outros mantimentos enquanto os acessos da cidade estavam bloqueados.
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Guerra da Bósnia e Cerco de Sarajevo
O Cerco de Sarajevo foi um dos mais sangrentos episódios da Guerra da Bósnia, ocorrida entre 1992 e 1995 em meio à dissolução da antiga Iugoslávia (atual Sérvia), nos Bálcãs.
No início de março, de 1992, a população da Bósnia e Herzegovina, um dos estados da Federação Ioguslava, votou em referendo a favor da independência em relação ao governo central de Belgrado.
Mulheres muçulmanas bósnias choram durante um comício no centro de Sarajevo pedindo que se unam aos seus antigos vizinhos no bairro sérvio de Grbavica, em 11 de dezembro de 1995
AP/John Gaps III
A decisão foi comemorada pelos bosníacos, etnia que compunha 44% da população local, mas enfrentou resistência dos sérvio-bósnios, que eram 32,5% dos habitantes.
Com o armamento e o apoio da Iugoslávia, controlada por sérvios, os sérvio-bósnios estabeleceram um exército sob um Estado reconhecido apenas por Belgrado, mas sem respaldo da comunidade internacional, a República Srpska.
Entre 5 de abril de 1992 e 29 de fevereiro de 1996, as milícias sérvio-bósnias cercaram a capital da Bósnia, Sarajevo, de maioria bosníaca — parte da população sérvio-bósnia havia abandonado o local.
Homem atravessa a neve profunda de um cemitério em 13 de dezembro de 1995, na cidade de Sarajevo, região que sofreu com conflito armado entre 1992 e 1995
AP/John Gaps III
A cidade fica localizada em um vale, e tropas sérvias posicionaram artilharias e franco-atiradores nas montanhas ao redor, impedindo o acesso de armas Exército Bósnio. Civis também sofreram com falta de água, luz e gás (essencial para o aquecimento durante o inverno) durante boa parte dos 1.425 dias de cerco.
Estima-se que cerca de 13 mil militares foram posicionados ao redor de Sarajevo. Franco-atiradores eram conhecidos por atirar indiscriminadamente em alvos civis, incluindo mulheres e crianças. Cálculos da Unicef indicam que 65 mil das 80 mil crianças da cidade, ou 40% da população infantil, foi alvejada diretamente por snipers.
Segundo números oficiais, 5.434 civis foram mortos em Sarajevo durante o cerco, sento 3.855 bosníacos, 1.097 sérvios e 482 sérvio-croatas. Dos mortos, cerca de 1.500 eram crianças. Outras 15 mil ficaram feridas nos combates.
O conflito, um dos mais sangrentos da Europa após a Segunda Guerra Mundial, ficou marcado pela limpeza étnica, por crimes de guerra e contra a humanidade, como estupros em massa de mulheres, e por episódios classificados como genocídio, como o massacre de Srebrenica.
A ONU interveio no conflito, enviando capacetes azuis e realizando uma ponte aérea para a entrega de suprimentos em Sarajevo.
A guerra terminou com os acordos de Dayton, assinados em novembro de 1995. Atos de hostilidade continuaram ocorrendo até a estabilização total da situação e a saída definitiva das tropas sérvio-bósnias de suas posições, em fevereiro do ano seguinte.
Diversas autoridades sérvias foram julgadas e condenadas por crimes de guerra, como ex-presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosević, o comandante das forças da República Srpska, Ratko Mladić, e Stanislav Galić, comandante considerado responsável direto por dar ordens aos franco-atiradores.

Fonte: g1 > Mundo