
Indígenas Waimiri Atroari se formam pela 1ª vez no ensino fundamental e planejam faculdade
“Gratidão porque o [diploma] é o que faz fortalecer o meu estudo, meu conhecimento e para que eu conduza esse conhecimento para o meu povo Waimiri Atroari”.
O sentimento é de Tuwadja Joanico Waimiri, de 43 anos, um dos 50 indígenas do povo Waimiri Atroari que concluiu os primeiros anos do ensino fundamental na Terra Indígena Waimiri Atroari, em Roraima. Pela primeira vez, os Kinja finalizaram essa etapa da educação formal, a base para toda a vida escolar de um estudante.
Os Waimiri Atroari vivem entre Roraima e Amazonas, em uma área demarcada em 1981 com mais de 2,5 milhões de hectares. Eles se autodenominam Kinja, que significa “gente de verdade”.
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O g1 esteve na terra indígena e acompanhou o momento em que homens de diferentes idades, jovens e adultos, receberam os diplomas de conclusão do Ensino Fundamental I, um marco histórico para o território. A cerimônia de formatura aconteceu no sábado (1º), no Núcleo de Apoio Waimiri Atroari (Nawa), na parte do território que fica em Rorainópolis, município no Sul de Roraima.
Os alunos estudaram em um projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA) criado pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pela Associação da Comunidade Waimiri Atroari (ACWA). As aulas, do 1º ao 5º ano, começaram em março e terminaram em setembro de 2025.
Agora, os planos do projeto são continuar a formação dos indígenas em novas etapas de estudos até chegar ao ensino superior. Um dia após a formatura, no domingo (2), eles começaram o Ensino Fundamental II, que deve seguir até julho de 2026.
O objetivo dos Waimiri Atroari é fazer faculdade para fortalecer a defesa do território e da cultura. Para Joanico Waimiri, um dos formados, a conquista também representa a continuação do espírito guerreiro do povo.
Líder da aldeia Maiamy, ele quer seguir os estudos e se formar em Direito para defender o povo Waimiri Atroari e atuar de maneira política:
“Me formar pelo direito do povo indígena, advogado. A gente precisa muito aqui para sempre ter essa liberdade e para poder ajudar o povo Waimiri Atroari em questão política”.
Tuwadja Joanico Waimiri, um dos 50 indígenas do povo Waimiri Atroari a concluir o ensino fundamental I.
Yara Ramalho/g1 RR
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Indígena Waimiri Atroari recebe diploma de conclusão do Ensino Fundamental I, durante cerimônia na TI Waimiri Atroari.
Yara Ramalho/g1 RR
🎓🏹 Guerreiros da educação
O primeiro diploma marca a realização de um sonho que o povo Kinja persegue há mais de 30 anos. Para eles, a educação é uma forma de proteger a terra, preservar a cultura e fortalecer a autonomia.
“Que a gente possa trabalhar aqui dentro do nosso território Waimiri Atroari, proteger o nosso território e também preservar a nossa cultura […] Acredito que no futuro os nossos alunos, nosso filhos, possam fazer as coisas deles sozinhos”.
A primeira turma da EJA Waimiri Atroari recebeu o nome do indigenista José Porfírio Fontenele de Carvalho, aliado dos Kinja, que morreu em 2017. A filha dele, Janete Carvalho, diretora da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), participou da formatura.
Os Waimiri Atroari enfrentaram décadas de violações de direitos e de luta para preservar a própria identidade. Durante a ditadura militar, nos anos 1970, o povo foi quase dizimado com a construção da BR-174, única rodovia que liga Roraima ao restante do Brasil e corta o território indígena.
José Maria, liderança do povo Waimiri Atroari.
Yara Ramalho/g1 RR
Em 1972, eram estimados cerca de 3 mil indígenas. O número caiu para 420 em 1987 e para 350 em 1983, segundo um relatório da Comissão Nacional da Verdade, colegiado criado em 2012 pelo governo federal para apurar denúncias de violações de direitos humanos durante a ditadura.
➡️ A BR-174 foi concluída em 1979. Na década seguinte, a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, alagou parte do território e forçou indígenas a deixar suas aldeias.
Depois de décadas de violência e perdas, o povo original reconstruiu sua população. Hoje, são estimadas mais de 90 aldeias e cerca de 2,8 mil Kinjas.
Com o corpo pintado com grafismo indígena, jovens e adultos Waimiri Atroari se preparam para receber diploma.
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O líder geral Parwe Mário Atroari, presidente da Associação Comunidade Waimiri Atroari, lembrou os tempos de destruição e destacou a importância da educação para proteger o território e a cultura. Para ele, agora, o aprendizado ajudará os jovens a defender o território e a cultura indígena.
Parwe Mário Atroari, liderança do povo Waimiri Atroari.
Yara Ramalho/g1 RR
“Eu acho eles vão aprender de forma completa, porque estão com saúde e tem tudo aqui na aldeia. Agora, eles podem fazer tudo o que tem, aprender sem sofrimento, com muita saúde”.
“Eu fico muito contente quando vejo o pessoal estudando. Eu fico muito alegre”, ressaltou o líder indígena.
Pedido dos próprios Waimiri Atroari
Indígenas Waimiri Atroari concluíram os primeiros anos do ensino fundamental.
Yara Ramalho/g1 RR
O projeto de ensino começou a partir de um pedido dos próprios Waimiri Atroari. Eles queriam acesso ao ensino regular organizado pelo Ministério da Educação e também acesso ao magistério – formação voltada para quem quer ser professor. O povo tem um sistema educacional próprio, voltado à alfabetização na língua materna, o Kinja iara, da família Karib.
A parceria entre a UFRR e a Associação Waimiri Atroari começou em 2017, quando os indígenas pediram cursos de capacitação dentro do território.
Em 2018, a UFRR iniciou as formações, com temas definidos conforme as demandas das aldeias, como segurança alimentar e saúde. Os cursos, de 20 horas, seguem ativos e ocorrem em dois polos: próximo ao rio e às estradas.
Pela primeira vez, os Kinja finalizaram os primeiros anos do ensino fundamental.
Yara Ramalho/g1 RR
A partir dessa experiência, os Waimiri pediram que a universidade levasse o ensino regular às aldeias, respeitando a cultura indígena. O objetivo é que, no futuro, eles próprios possam se formar como professores e ensinar na comunidade.
O professor e antropólogo Carlos Alberto Marinho Cirino, coordenador do EJA-Indígena da UFRR e docente do Instituto de Antropologia, avalia que o diploma é uma nova ferramenta de fortalecimento cultural entre os Kinja.
“Esse conhecimento passa a ser uma ferramenta a mais de luta deles na preservação, na sua cultura, no seu território. O processo educacional que a gente está trazendo é todo alinhado a cultura deles e é uma forma deles, através desse conhecimento, usar esse conhecimento para dialogar com os não kinja, que são os kaminja (não indígenas)”, explicou Cirino.
As discussões sobre a criação do curso começaram em 2024. O modelo de ensino foi definido em dezembro, durante uma reunião entre lideranças indígenas e representantes da universidade.
As aulas começaram três meses depois, em 16 de março de 2025, um domingo. O curso foi conduzido por professores e pedagogos do Colégio de Aplicação (CAp), unidade de educação básica da UFRR.
Reitor da Universidade Federal de Roraima, José Geraldo Ticianeli.
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O reitor da UFRR, José Geraldo Ticianeli, explicou que o curso integrou a cultura, a arte e as tradições dos Waimiri Atroari, mantendo o vínculo com os saberes tradicionais. Para ele, a formação é um marco histórico que transforma não só a luta dos indígenas, mas também a própria universidade.
“É um processo histórico para todos nós. A universidade está fazendo o seu papel fundamental, institucional, a sua missão, que é ir aonde aqueles que não têm a perspectiva e possibilidade de educação […] pode ter certeza que estamos aprendendo também muito com eles, que também já são professores”, afirmou Geraldo Ticianeli.
“A universidade atende um pedido da comunidade que tem como objetivo se formar, mas para trazer esse conhecimento para seus pares, para seus parentes, para sua própria comunidade”, ressaltou o reitor.
O caminho até o diploma
Indígenas Waimiri Atroari se formam no Ensino Fundamental em parceria com a UFRR
A formação dos Waimiri Atroari foi adaptada às particularidades do povo e da região.
Para adequar o ensino à realidade dos alunos indígenas, o formato também foi unido à pedagogia da alternância, uma metodologia francesa que une um período de convivência em sala de aula com outro em aldeia.
Aulas ocorreram no Núcleo de Apoio Waimiri Atroari (Nawa), dentro da TI Waimiri Atroari.
Arquivo pessoal
O modelo foi desenvolvido pela professora e coordenadora da EJA, Edjane Scacabarossi, junto a professores do Colégio de Aplicação. O objetivo foi respeitar os estudantes e valorizar a cultura.
“A EJA vai muito além de um ensino tradicional, ela fortalece a identidade cultural e a autonomia dos alunos, mas também valoriza os saberes tradicionais”, explicou Edjane Scacabarossi.
Professora Edjane Scacabarossi, coordenadora do EJA.
Yara Ramalho/g1 RR
Durante seis meses, os estudantes se deslocaram das aldeias até o Núcleo de Apoio, onde ocorreram as aulas. Eles vieram de aldeias ribeirinhas, conhecidas como eixo rio, e aldeias mais próximas da BR-174, o eixo da estrada.
O ensino foi dividido em dois ciclos: 15 dias de tempo-escola e 15 dias de tempo-comunidade. Na prática, os alunos passavam duas semanas no Nawa para as aulas presenciais, que ocorreram de domingo a domingo.
Após o período de aulas, os alunos voltavam às aldeias e continuavam os estudos com apostilas e cadernos de atividades. Eles também podiam tirar dúvidas com os professores por telefone.
“O tempo-escola é bem puxado para eles, porque 15 dias já é muito tempo para eles ficarem fora da aldeia. Eles fazem parte de um núcleo em que precisam participar de todas os afazeres na aldeia. Quando estavam aqui, a gente tinha aula de manhã, de tarde e às vezes à noite”, explicou Edjane.
👨🏫 A equipe docente foi formada por seis professores, com três pedagogos em cada período de aulas, responsáveis por disciplinas como português, matemática, história, ciências e geografia.
A partir de agora, além de guardiões da floresta, os Kinja poderão ser professores, médicos, advogados e o que mais sonharem ser.
Cerimôia de formatura ocorreu no Núcleo de Apoio Waimiri Atroari (Nawa), na parte do território que fica em Rorainópolis.
Yara Ramalho/g1 RR
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Fonte: g1
